A tal da Cultura Popular e Cultura Erudita - tradicionalismo modismos e paixonites



O que é Cultura?

O termo CULTURA é complexo, multidimensional e dinâmico, por isso difícil de ser definido. Relacionado ao longo do tempo em diferentes sociedades, objeto de estudo de filósofos e sob analise das classes dominantes, é discutido em diferentes esferas com abordagens diferentes, passando pelo viés econômico, o olhar romântico do século 18, os humanistas e reformistas, também pelos movimentos liberais e de contra-cultura ao longo da história.

De forma generalizada, evoluiu desde os conceitos pré-socráticos e filósofos antigos, relações do homem com a natureza, seus cultos e ritos, passando pelas civilizações históricas, e mantém-se em torno de discussões dos elementos principais: trabalho e divisão de classes, religião e filosofia, linguagem e arte, ciências e políticas. Hoje, percebe-se mais este processo dinâmico entre seus agentes sociais e suas implicações num mundo cada vez mais globalizado, com suas idéias propagadas velozmente através das novas tecnologias, mas mantendo-se fiel aos ideais pertencentes ao interesses e conflitos nas relações de poder.

O que é Cultura Erudita e Cultura Popular?

Em primeira observação tendemos a levar em conta somente o espectro econômico e social de classes, onde a classe dominante seria responsável pela cultura erudita e seu consumo – as belas artes, as artes maiores, a arte intelectual influenciadora - e a classe dominada ou de trabalhadores que consume apenas as pequenas culturas ou populares – a cultura que sobra ou é imposta pelas classes dominantes. Avançando na questão da complexidade e organização do mundo moderno, esta separação torna-se mais sublime quando a produção desta cultura hoje transformou-se numa industria cultural, onde as elites pensantes compreendem e incorporam o que é popular, transformam e a entregam através desse mercado dinâmico, e por outro lado, a cultura popular ou as grandes massas das populações percebem esta cultura incorporando-a, reelaboram seus elementos tradicionalmente associados às elites,  também transformando-as e disseminando suas novas adaptações para serem novamente estudadas pelos pensadores da elite, repetindo este ciclo.

É importante ressaltar, nesse sentido de ciclos contínuos, um outro processo da sociedade pós-modernidade atual: o fenômeno da MODA. Estudo esse ainda carente de aprofundamentos – inicialmente abordado por Gabriel de Tarde e discutido por pensadores como  Gilles Lipovetsky em sua polemica análise O Império do Efêmero - mas extremamente importante para entendermos fenômenos de mass media ao qual estamos expostos hoje:

Analise sem duvida justificada no final do século XIX, no momento em que G. de Tarde escrevia, quando a moda ainda não ganhara toda sua extensão e deixava subsistirem amplos aspectos da vida coletiva sob o julgo da tradição e da autoridade do passado, mas que não se pode prolongar tal e qual num tempo em que a economia, a cultura, o sentido, a existência cotidiana encontram-se regulados pelo efêmero e pela sedução. Com a moda consumada operou-se uma mutação capital no eixo do tempo social, uma reviravolta na composição das forças entre moda e costume: pela primeira vez, o espírito da moda prevalece quase por toda parte sobre a tradição, a modernidade sobre a herança. À medida que a moda engloba esferas cada vez mais amplas da vida coletiva, o reino da tradição se eclipsa, não representa mais que uma torrente bem fraca comparado ao grande rio da moda. Aí está o novo histórico: nossas sociedades funcionam fora do poder regulador e integrador do passado, o eixo do presente tornou-se uma temporalidade socialmente prevalente. Por toda parte se desenvolvem os fenômenos da paixonite e a lógica da inconstância, por toda parte se manifestam o gosto e o valor do NOVO; são normas flutuantes, continuadamente re-atualizadas, que nos socializam e guiam nossos comportamentos. [...] Se a moda nos governa, é que o passado já não e o pólo que ordena o detalhe de nossas ações, de nossos gostos, de nossas crenças; os decretos antigos são amplamente desqualificados para orientar comportamentos. Quer seja em matéria de educação, de saber, de higiene, de consumo, de esporte, de relações humanas, de lazer, é aqui e agora que encontramos nossos modelos, não atrás de nós. [...]o espírito costumeiro cedeu o passo ao espírito de novidade. A moda esta no comando porque o passado legislador não e mais regulador, porque o amor pelas novidades tornou-se geral, regular, sem limites –  “a curiosidade tornou-se uma paixão fatal, irresistível”, escrevia Baudelaire.



 

Cultura Erudita e Cultura Popular no Brasil

No Brasil seguimos estas tendências. Desde sua fundação até os dias atuais somos influenciados pelo estrangeiro, ora por efeito de uma colonização mássica, ora pela avassaladora imposição das ideologias religiosas e seus efeitos morais. De volta às questões por quem ela é produzida e por quem é consumida, imediatamente levados pela tendência de que erudito é exclusivo dos pensadores, cientistas e universidades, alta cultura absorvida através de livros, filmes, música clássica ou peças de teatro, como se estes não fossem influenciados pela cultura popular. O próprio Heitor Villa-Lobos, proeminente aqui e lá no estrangeiro, procurou aproximar em seus peças os sons comuns encontrados na natureza como o canto dos pássaros, cuja fonte de pesquisa partiu do conhecimento de gente simples dos lugares mais afastados de qualquer centro intelectualizado.  Relacionar, compreender e selecionar os elementos característicos de nossa cultura, seja erudita, estrangeira, importada, ou nossa cultura popular, legítima da terra, nacional ou do povo, é passear pelos movimentos estéticos que se sucederam após o século XIX, e toda a busca por uma identidade que se seguiu no século XX.


Cultura Nacional e os Movimentos Estéticos

No principio influenciados pelo Romantismo, seus poemas nacionalistas voltados a formação de uma sociedade dita brasileira, onde temas como escravos e indígenas, escravidão e injustiça, presentes como no romance Iracema (José de Alencar), em que se recorria a uma mudança de imagem de um pais de sub cultura por ser habitado por índios, ou seja, primitivos, alienados de cultura, nestes poemas transformados em protagonistas pelos poetas. Outros autores como Silvio Romero, Euclides da cunha, tentaram compreender os movimentos e estórias populares no interior do Brasil, seus conflitos como a Guerra de Canudos (1897), pesquisando as identidades dos homens do sertão, dos descendentes africanos, do negro e do índio, a fim de encontrar a verdadeira raça brasileira, distante das influencias cultuais européias e seu determinismos de mundo moderno, pelo avanço da técnica e do progresso ainda insipiente no país, conflitante numa sociedade recém constituída, principalmente nos grandes centros urbanos situados no litoral, em busca de uma definição da cultura brasileira e popular.

No movimento modernista, com a Semana de Arte Moderna de 1922, essa preocupação em mostrar o Brasil aos brasileiros, suas expressões e seu cotidiano. Com suas lendas e temas populares, Macunaíma – obra de Mario de Andrade – trabalha esse identidade contrapondo o campo e a cidade, o nacional e o estrangeiro, tradição e mudança, que se desenrolavam no processo de industrialização, modernização e urbanização, na essência importados dos europeus para as ruas da cidades, com valores, crenças, costumes e posições políticas, em meados do século XIX. Os modernistas brasileiros da Semana de Arte Moderna, entre eles Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Victor Brecheret, Plínio salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sergio Milliet, Heitor Villa Lobos, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti (tantos sobrenomes estrangeiros não?), ajudaram a compreender a arte e a cultura popular, assim como os escritores nordestinos e os movimentos culturais do CPC – Centro Popular de Cultura – e a UNE – União Nacional do Estudantes, dialogavam com os intelectuais e faziam a transformação social, conscientizando o povo a cerca da necessidade de valor à sua identidade original. Seguiu-se então outros movimentos como o Cinema Novo – com retrato do Brasil pobre, sofrido, dependente e subdesenvolvido – e nos anos 60 o Tropicalismo – a partir do manifesto antropofágico modernista de Oswald de Andrade – que trabalhou a estética do folclore, do popular, com composições consideradas eruditas, mastigando os aspectos inovadores e os estrangeirismos, em fusão com a cultura brasileira, transformando-os usando do deboche, irreverência e improvisação, uma nova maneira brasileira de ser, um produto artístico novo, na contracultura de valores impostos pela cultura dominante, cheia de referências cafonas, ultrapassadas e subdesenvolvidas, rompendo com as antigas estéticas e questionando o que é nacional, o que estrangeiro, o que é popular e o que é erudito.

Cultura Popular ou Folclore? 

Tradição ou Transformação?

A meu ver não existe distinção entre popular e folclore. Partindo da idéia de que fomos colonizados e todos os nossos costumes e crenças foram importados juntos com os que chegaram aqui, o que temos hoje são adaptações destas tradições transformadas em função de nossa localização, clima e características de nossa população. Cada vez mais fico impressionado com as semelhanças de ritmos tocados em festas folclóricas no pais, com as festas de lugares como Portugal, Espanha, Itália, até Arábia e Oriente Médio. Não podemos negar suas influências, principalmente a africana, quando falamos em folclore ou tradição. Como analisado antes, passamos cada vez mais rápido pelas transições, as quais a sociedade moderna dita-nos suas normas, seguimos na torrente dos avanços tecnológicos e acompanhamos incorporando essas normas mais por modismos do que pelos valores tradicionais, valores estes que foram pensados muito antes de aqui ter chegado Cabral e sua nau – evento em si controverso e carregado de estória repassada pelas nossas escolas - e que seguiam as transformações européias também causadas pelas recentes descobertas nas incursões pela Ásia e civilizações antigas. Dentro deste cenário é fato que estas tradições procuram refletir, simbolicamente, todas estas passagens históricas ocorridas no velho mundo, e suas interpretações que há tempo, sob olhares de agentes sociais, os setores da sociedade dominantes, o dogma imposto pela igreja, foram adaptados e transladados para as Américas.

Desde o tropicalismo e os movimentos anteriores que buscavam entender e romper com estas influencias européias e outras estrangeiras, formulamos uma identificação com o que é nacional, mais em termos de consciência do que de geradora de novos costumes, estes movimentos tentam mais compreender estas influencias, e trazer para dentro de nossas fronteiras, o que é inevitavelmente oriundo do exterior. O contraste gerado a partir do que tradicional, já transformado e adaptado, e o que é novo e consumido em grande escala pelos países desenvolvidos - pois é, ainda somos subdesenvolvidos - facilmente é assimilado e recebido sem reservas pela nossa dita cultura nacional. Vejam os filmes, programas, séries de TV, programas de auditório, para só limitar ao meio televisivo dada sua tamanha influência em todas as camadas sociais, que propaga seus hábitos de consumo e que ainda encontram seus defensores partidários, ao ponto de valorizá-los mais do que o produto original, sobre o pretexto de serem superiores aos nossos, os japoneses  e chineses legítimos.

A ultima vez que vi um movimento nacional digno de questões originais, com capacidade de aceitar estas transformações, assimilar a influência da tecnologia, refazer a leitura de outros movimentos internacionais, se propor a dialogar com estas fontes e interpretá-las, foi o movimento MANGUEBEAT. Na sua essência, juntou o aspecto original de sua cultura nordestina, valorizando suas raízes e contrapondo com as influencias do estrangeiro, reinterpretando os compositores e pensadores das capitais, discutiu e difundiu também através de manifesto próprio as bases de seus conceitos, atingindo a coesão de todos os artistas da região do Recife, e expandiu fronteiras para além do nordeste brasileiro, sendo bem recebido também e fazendo grande sucesso no velho mundo.
Mas enquanto estivermos sob o julgo da corrupção dos que nos governam, enquanto estivermos a mercê de poucos investimentos em cultura, dada sua dimensão e diversidade, não deixando para trás nenhum cantinho e fazendo medidas com pesos iguais às diferentes formas de expressão de nosso vasto território nacional, identificando e apoiando todas suas manifestações, promovendo o diálogo entre as regiões norte e sul, leste e oeste desse país, formando uma unidade dentro da pluralidade de forma orquestrada, para que essa imagem possa correr o mundo e divulgar nossa cultura, seja ela popular ou erudita, folclórica e tradicional ou transformada, aproveitando o bom momento econômico e esta década de grandes eventos esportivos de nível mundial...

Se nada disso for pensado, com a responsabilidade que nos cabe, em prol de sermos uma nação verdadeiramente com identidade própria, se nada disso for feito, estaremos ainda de braços e pernas abertos, dispostos a continuarmos sendo colonizados, explorados e influenciados de forma negativa, sem liberdade para sermos autênticos e independentes dentro de nosso próprio território, donos de nossos recursos, com direito ao usufruto do que temos de melhor, produzindo e consumindo aqui mesmo o que nosso povo sabe fazer, de nossa maneiro, de nosso jeito, do jeito que todas as cores de um pais continental rico e diversificado é capaz de manifestar originalmente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas 
sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ANDERSON, Benedict Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática. 1989.

BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Petrópolis: Vo-
zes, 1972.

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna São Paulo: Companhia das
Letras. 1989.

CHAUI. Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil
São Paulo: Brasiliense. 1986.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1981.

COHN, Gabriel. Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Nacional, 1971.

EAGLETON, Teny. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Ed. da UNESP/Boitempo, 1997.

GEERTZ. Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
O autor, neste denso livro, preocupa-se em construir uma teoria interpretativa da cultura, entendida como um sistema simbólico. Procura definir o que é a cultura, que papel desempenha na vida social e como se deve estudá-la.

LIMA, Luís Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. As coletâneas organizadas por Cohn e Costa Lima são fundamentais. pois reúnem textos sobre cultura de massa e indústria cultural escritos por filósofos, semiólogos, representantes da sociologia norte-americana, etc. Trazem alguns dos principais textos dos filósofos da Escola de Frankfurt (Marcuse, Benjamin, Adomo, Horkheimer). Marx e Engels apresentam os princípios do materialismo histórico, além de desenvolver o conceito de ideologia.

MARX, K, ENGELS, R. A ideologia alemã. 3? ed. Lisboa: Presença; s.d., v. 1.
Neste livro, o autor faz uma análise detalhada do conceito de ideologia em Marx e o contrapõe ao conceito de hegemonia de Gramsci. Trabalha, também, questões referentes a arte e à literatura.
NOVAES, Adauto (org.). Rede imaginária: televisão e democracia. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Companhia das Letras, 1991.

NOVAES, Femando A (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997-1998. 4 v.
O autor examina - de maneira rigorosa e a partir de uma perspectiva atual - as várias definições do conceito de ideologia e recapitula o tratamento que a ele dedicaram autores marxistas e não marxistas. entre os quais, Lukács, Gramsci, Adomo, Bourdieu, Schopenhauer, Nietzche e Freud. O autor reflete de maneira rica e arguta sobre os conceitos de nação, nacionalismo e consciência nacional, fundamentais para analisar o tema da cultura nacional.

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 
Sahlins desenvolve a tese de que todos os planos de atividade social (a política, a cultura, a economia) são organizados de acordo com um sistema de significados culturais, não sendo determinados por razões utilitárias. É interessante consultá-lo, pois questiona o determinismo economicista de algumas vertentes teóricas.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

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